terça-feira, 3 de maio de 2011

Mora & Avis – De braços abertos

Tal como na canção De Braços Abertos, Roberta Sá abraçou as gentes do Alto Alentejo com a sua simpatia. Com a certeza de que as duas culturas são fraternas, Roberta está a pensar fundar um movimento onde o intercâmbio entre Portugal e o Brasil será feito de forma mais consciente.

São apenas nove e meia da manhã de domingo e já sentimos que sugámos o tutano da vida de que falava Henry Thoreau. A pé desde as seis, vimos o sol nascer por trás da vila alentejana de Avis, sobrevoámos a barragem do Maranhão, avistámos a de Montargil, e descobrimos vida animal entre chaparros (sobreiros em alentejano). A paisagem deixa sem palavras os passageiros do balão de ar quente guiado por Aníbal Soares e por Bruno Santos. Para Roberta Sá, o baptismo de balão é uma surpresa, quer pelas sensações, quer pelas descobertas. “Dizem vocês que a Amazónia é exótica, o Alentejo é bem mais!” O voo revela-nos muito mais do que a profusão de azuis, amarelos e verdes que compõem a paisagem. Aníbal Soares, fundador da Publibalão, relembra que no século XVIII o padre Bartolomeu de Gusmão fez voar um aerostato perante a corte atónita de D. João V, tendo ficado conhecido como o “padre voador”. Diz-se que terá voado num balão entre o castelo e o Terreiro do Paço, mas disto não há qualquer prova.

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Já nós, temos provas de sobra da vinda de Roberta Sá ao Alentejo. Sejam fotográficas, sejam as declarações de amor que a cantora foi desfiando nos dois dias em que a beleza natural da região serviu de mote para conversas e encontros. O primeiro deu-se sábado ao almoço no restaurante O Poço, em Brotas, outrora terra de romarias. José e Vitória Vinagre e a filha Carina fazem bem jus à hospitalidade alentejana, rodeando-nos de um manancial de acepipes, do qual as batatas de borrifo fazem grande furor. A cantora vai mais longe, garantindo que nesta mesa pode sentir-se “a glória divina do Senhor” personificada nos ovos com farinheira ou na orelha de vinagreta.

Culturas irmãs

Em Natal, onde nasceu, Roberta acostumou-se desde cedo a uma mesa farta, especialmente na fazenda dos avós, em Ceará Miram. Ficamos a saber que a cantora tem laços que nunca mais acabam com Portugal. Com os apelidos Varella de Sá, salta à vista que a “família tem ascendência portuguesa” e, para compor o ramalhete, a mãe do marido, o músico Pedro Luís, era transmontana, de Vila Real. Com tamanho pedigree não admira os elogios que se seguem ao arroz de lebre, ao cabrito assado, à perdiz estufada, à carne do alguidar, tudo bem regado pelo vinho tinto Herdade dos Grous. João Mário Linhares, o agente que a acompanha, remata: “Esta festa de Babette está maravilhosa”. Se o repasto suplantou as expectativas, a conversa revelou-se melhor ainda. Roberta anuncia que vai fundar um movimento em que “Portugal e o Brasil são apresentados como povos irmãos”, justificando que “todo o brasileiro devia conhecer Portugal. A gente se reconhece aqui. Chego a Lisboa e entendo melhor o meu país”. É fácil concordar com Roberta já que, do lado de cá, sentimos que regressar ao Brasil nos faz redescobrir a nossa cultura, seja através dos doze profetas esculpidos por Aleijadinho no Santuário de Congonhas, seja nas igrejas barrocas de Ouro Preto. Ou até no samba que tem a ver com o fado e com o choro, assim como estes dois géneros musicais derivam do lundu africano.

A chegada de José Pinto, vereador da Câmara Municipal e presidente do Fluviário de Mora, traz-nos de volta ao Alentejo. Este entusiasta da região conta que o maior aquário de água doce da Europa foi fruto de uma iniciativa da câmara local. Ter sido radialista em França quando lá esteve emigrado fez José Pinto receber com alegria a proposta do compositor José Peixoto para realizar, no Fluviário, o festival Músicas no Rio, cuja primeira edição decorreu em Julho do ano passado. Para a edição deste ano – o festival realiza-se de 15 a 23 de Julho – já estão confirmados a Sinfonietta de Lisboa, Camané, Rão Kyao e Júlio Pereira, entre outros.

Com a injecção calórica do pijaminha, composto por doce de gila, pudim rançoso e toucinho-do-céu, é tempo de nos fazermos à estrada para visitar o que resta da antiga vila das Águias. Antes de lá chegarmos, a imponente torre fortificada sinaliza o caminho campestre de terra batida que nos levará até ela. Com cerca de 60 salas, este monumento militar de traça manuelina data, sem certezas, do século XVI.

Proteger as tradições e o ecossistema
Seguimos para a igreja de Nossa Senhora de Brotas, lugar de peregrinação que remonta ao século XV. Diz a lenda que a igreja foi erguida a pedido de Nossa Senhora, a quem se atribui o milagre de ter ressuscitado uma vaca de um pastor.

Hoje, encontramos no santuário uma imagem minúscula da virgem talhada em marfim que a sabedoria popular crê ser o osso do tornozelo da vaca. O culto chegou além fronteiras, nomeadamente à Índia e Brasil. O santuário, que teve o seu apogeu nos séculos XVII e XVIII, terá perdido a sua importância no século XX. Já o casario, que um dia albergou confrarias de vários pontos do país, foi transformado no turismo de Aldeia – as Casas de Romaria. Roberta ouve com atenção as explicações de Célia Matos, vice-presidente da Associação Abrottea e proprietária da Casa dos Mordomos de Évora, que vende reproduções de azulejos da igreja e vários objectos de cerâmica ali produzidos.

A paragem que se segue é o Fluviário de Mora. Roberta está encantada com a paisagem do parque ecológico do Gameiro, toda coberta com flores campestres e ervas de cheiro, e vai cantarolando “Espada de São Jorge”, onde se diz “que todas as ervas medicinais servem para cozinhar e para feitiço”. Um tema de Roque Ferreira, que não coube, com grande pena sua, no último disco Quando o Canto é Reza. Está na hora de “navegarmos” pela exposição que nos leva pelo curso do rio ibérico. Da nascente até à foz, guiados pelas explicações de José Pinto, que demonstra estar como “peixe na água”. Ao descobrirmos os habitats aquáticos e terrestres que existem num rio, importa reter “a necessidade urgente de proteger o ecossistema.”

Nesta casa onde podemos conhecer, entre muitos outros, peixes como o bordalo, o verdemã, ou o gambusia – introduzido em Portugal no século XX para combater a malária –, as lontras Mariza e Cristiano Ronaldo são a principal atracção e, talvez por isso, nem se dignem dar um ar da sua graça. Roberta brinca: “Estão fazendo o filhote que receberá o meu nome”. Uma promessa feita pelo autarca ao almoço. O sapo também merece honras da cantora. “Há alguns que se transformam em príncipes, mas há príncipes que a gente beija e se transformam em sapos.”

A viagem continua pelos continentes sul-americano e africano, onde os bichos se destacam, ou pela sua ferocidade, como a anaconda amarela, ou pela sua forma surpreendente, como o peixe-gato. Actualmente em obras de ampliação, o edifício cujo projecto é da Promontório Arquitectos já recebeu vários prémios nacionais e internacionais.

O sol começa a cair e espera-nos um magnífico entardecer na Herdade da Cortesia, que amavelmente nos recebeu neste fim-de-semana. Da piscina temos uma vista singular para a barragem do Maranhão, local escolhido pelas selecções internacionais de remo para efectuar os treinos. Pedro da Veiga recebe-nos “de braços abertos”. Uma coincidência feliz é o lema do hotel ser: “A natureza de braços abertos”. Parece ter sido combinado com a nova assinatura da TAP, cantada pelo trio composto por Roberta de Sá, pela portuguesa Mariza e pelo angolano Paulo Flores, a demonstrar a proximidade entre os povos que se expressam em português. Quanto à banda sonora deste fim de tarde é irreproduzível em palavras, com destaque para o cantar do cuco que marca compasso no silêncio.

À descoberta do artesanato local
À hora do jantar reunimo-nos de novo à volta da mesa, desta vez no restaurante 180º. As deliciosas sopas de tomate fazem Roberta regressar à infância que, nos intervalos da conversa, vai dando garfadas num forasteiro caril de camarão com o tempero de Gustavo Martins. Consensual também é a menção honrosa para o gelado de lima com morangos salpicados. A conversa está boa, mas na manhã seguinte levantaremos voo ainda de madrugada.

Se o passeio de balão pelo ar foi calmo, a aterragem e o resgate teve sabor de aventura. Um par de horas perdidos no mato, sem kit de sobrevivência, o que nos impedirá de ver a anta de Pavia transformada em capela, assim como a Casa Museu de Manuel de Pavia cujo traço reproduz a vida rural alentejana. Rural é também a paisagem de Cabeção, onde terminamos o nosso périplo por estas paragens. Depois de alguns percalços, chegamos ao “oásis” de Cabeção por volta das quatro da tarde. O restaurante chama-se Palmeira e fez 28 anos em Maio. Se a simpatia de Bruno Cravidão e de Fernanda Nunes acalmam a impaciência de quem está há muitas horas acordado, o tempero de Ana Maria Pinto provocará nos convivas uma sensação de conforto traduzido no silêncio em que a refeição acontece. Excepção para elogiar a sopa da panela. “Está deliciosa. Nunca pensei tomar sopa de pombo na vida.” Bem recebidas são também as premiadas migas de espargos bravos, que Roberta classifica de “maravilhosas”. Apaixonada pela cultura e gastronomia alentejana, muito semelhante à da casa da partida – o Nordeste brasileiro –, a cantora diz que da próxima vez que vier a Portugal fará “uma viagem pelo artesanato português. De norte a sul do país”.

por Maria João Veloso
Fonte: UP MAGAZINE TAP

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